Moeda comum: como proposta do governo pode afetar brasileiros e vizinhos sul-americanos
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aproveitou a reunião com líderes de países da América do Sul, na última semana, em Brasília, para reforçar o desejo do governo brasileiro de criar uma moeda comum para a região.
O assunto foi um dos 10 temas que Lula colocou em discussão a representantes dos países da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) presentes na capital brasileira.
A ideia, segundo o governo federal, é criar uma “unidade de referência comum” para o comércio entre os países do bloco, com o objetivo de reduzir a “dependência de moedas extrarregionais” — neste caso, o dólar.
Em outras palavras, a proposta pretende estabelecer uma espécie de moeda que sirva apenas para as relações comerciais entre os países — ou seja, para o pagamento de itens importados e exportados em território sul-americano — diminuindo, assim, o protagonismo do dólar.
Trata-se de um formato diferente da chamada moeda única, como o euro, que é uma moeda corrente utilizada não só para o comércio entre os países, mas também para pagamentos pela população no dia a dia (entenda mais baixo a diferença entre moedas única e comum).
Apesar de ainda não haver um detalhamento técnico da proposta — que exige uma implementação complexa —, especialistas ouvidos pelo g1 consideram o plano positivo, com potencial para gerar ganhos na industrialização dos países sul-americanos e geração de empregos especializados, que exigem uma formação técnica ou superior.
Moeda comum e moeda única: qual a diferença
Apesar de a união monetária entre os países da América do Sul ser uma discussão antiga (entenda mais abaixo), houve uma confusão recente em relação aos conceitos de “moeda comum”, colocada pelo governo, e “moeda única”.
Importante esclarecer os termos. Primeiro, vamos à moeda única, formato que se encaixa em um exemplo bem conhecido: o euro.
De forma simples, a moeda europeia é considerada única por ser usada não só em transações comerciais entre os países, mas também no dia a dia das pessoas — seja na ida à padaria ou na compra de um carro, por exemplo. Trata-se da moeda oficial de 20 países da Europa.
No caso da moeda comum proposta pelo governo brasileiro, a ideia é diferente. Ela funcionaria apenas como uma “câmara de compensação”, utilizada para transações comerciais entre os países. Não seria emitida, não teria utilidade em território nacional e, portanto, não substituiria nem seria usada simultaneamente ao real.
“A ideia é boa, e poderia facilitar o comércio regional. Mas ainda são necessárias diversas regras de implementação, incluindo acordos entre os bancos centrais sul-americanos. Até agora, vi declarações muito vagas sobre o tema. Não foi colocado um plano de trabalho nem prazos específicos”, continua.
Os possíveis efeitos da proposta
Um dos principais benefícios, segundo especialistas, seria o fortalecimento da relação comercial na região. O movimento, explicam, poderia gerar ganhos na industrialização e melhora no potencial produtivo dos países sul-americanos.
Na prática, uma moeda comum poderia diminuir a dependência do dólar e, assim, destravar a capacidade de pagamento de vizinhos como a Argentina, incentivando, entre outros fatores, a venda de produtos do Brasil para o país.
Atualmente, o potencial de compra dos argentinos é engessado devido ao baixo estoque que o país tem da moeda norte-americana e à dificuldade de formação de reservas internacionais, destacam os especialistas.
O economista-chefe da Análise Econômica, André Galhardo, lembra que essa é uma discussão antiga, mas que voltou a ganhar relevância após os últimos acontecimentos na Argentina. O país enfrenta uma diminuição de reservas internacionais e já registra uma inflação acumulada acima de 100%.
Segundo o economista, a questão é estratégica para o Brasil, que precisa “amparar” os parceiros comerciais da América do Sul e da América Latina para que continuem sendo grandes importadores de produtos brasileiros industrializados.
Nesse contexto, o professor de economia da Unifesp André Roncaglia usa uma analogia para explicar um dos principais gargalos atuais da relação comercial entre os países da região.
Além da Argentina, é o caso também da Venezuela, por exemplo. Apesar do potencial de importação, os países enfrentam desvalorização cambial e escassez de dólar — situação que prejudica diretamente os investimentos e a relação comercial com outras nações.
Após oito anos, Nicolás Maduro veio ao Brasil para encontro com Lula e reunião com outros líderes sul-americanos — Foto: EPA
Outro ponto destacado pelo especialista é o potencial para ampliação de acordos nas áreas de infraestrutura, segurança e saúde, tipos de investimentos que dependem de cooperação entre os países.
“Há uma série de benefícios a serem destravados se houver uma moeda nesses moldes”, conclui.
Dificuldades para sua implementação
Um dos principais desafios é a própria aplicação da proposta, que ainda não teve detalhes técnicos divulgados. O plano é complexo e, entre os pontos que ainda precisam ser estabelecidos, está o formato inicial de aplicação de recursos pelos países-membros.
A criação de um fundo para reduzir as diferenças entre as nações superavitárias (com as contas em dia) e as deficitárias (com resultados negativos) também teria que ser melhor detalhada. O objetivo, nesse caso, é criar mecanismos para equilibrar as economias do bloco.
Especialistas reforçam que a adoção de uma unidade comum requer cooperação de países que, atualmente, enfrentam necessidades e desafios distintos no curto e no longo prazo.
Assim, sua aplicação seria gradual e precisaria seguir o ritmo de restauração econômica dos países que enfrentam profunda crise, explica Roncaglia.
O economista ressalta que, nesse contexto, o Brasil desempenha um papel importante, porque além de ser a principal economia e possuir as maiores reservas internacionais da região, a liderança que o país exerce é central para essa estratégia.
Quais os impactos para o Brasil
Na prática, esse arranjo proposto pelo governo brasileiro pode ampliar o espaço de cooperação em investimentos, principalmente na área de infraestrutura compartilhada.
O professor André Roncaglia cita como exemplo a otimização da exploração de recursos naturais nas reservas de lítio — tipo de metal utilizado para fabricação de baterias. Grande parte das reservas mundiais do minério está no chamado Triângulo do Lítio, que abrange o norte do Chile, da Argentina e parte da Bolívia.
Essa cooperação poderia permitir ao Brasil oportunidades de sofisticação de sua produção, além de possibilitar o que o economista chama de “subir a escada tecnológica” — o que significa aproveitar o processo mundial de transação energética para aumentar a oferta de baterias elétricas.
Isso significa que, na prática, esse cenário possibilitaria que o Brasil desenvolvesse ainda mais a indústria de produtos manufaturados, com ganhos de produção e exportação.
Discussão é antiga, mas ganhou nova roupagem
No final dos anos 1980, Brasil e Argentina chegaram a discutir a ideia de uma moeda comum para o comércio, que se chamaria “gaúcho”. A proposta, no entanto, caiu no esquecimento diante do desafio de implementação.
O tema também veio à tona durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Em 2019, o ex-presidente divulgou planos para uma união monetária, que também nunca se materializou. A criação de um “peso real” — moeda comum entre Brasil e Argentina — foi defendida ainda pelo ex-ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes.
A proposta do governo atual tem referência em um artigo publicado em maio de 2022 no jornal “Folha de S.Paulo”, assinado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e por seu braço direito, Gabriel Galípolo, indicado para a diretoria de Política Monetária do Banco Central do Brasil.
No texto, os dois defendem a criação de uma moeda sul-americana para fortalecer o processo de integração regional e a soberania monetária dos países da América do Sul. Isso em um contexto em que, nas palavras dos autores, os países emergentes ou em desenvolvimento ainda sofrem “limitações econômicas decorrentes da fragilidade internacional de nossas moedas”.
Gabriel Galípolo e Fernando Haddad — Foto: TON MOLINA/ESTADÃO CONTEÚDO
O ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles relembra que, durante sua gestão como presidente do Banco Central do Brasil (2003 a 2011), o assunto também foi colocado na mesa, mas para a criação de uma moeda única — ou seja, nos moldes do euro.
Para ele, a evolução para aplicação de uma moeda única dependeria, entre outros fatores, da compatibilidade entre os países em relação às políticas fiscais e monetárias.
O ex-presidente do BC também destaca, nesse caso, a importância da criação de um Banco Central que represente todo o Mercosul, como acontece na Europa, que possui o Banco Central Europeu.